A responsabilidade civil do Estado é um tema de grande relevância no campo jurídico, especialmente quando se trata de casos envolvendo a prestação de serviços públicos, como é o caso da saúde. Nesse contexto, é fundamental analisar a possibilidade de aplicação da teoria da perda de uma chance, que busca reparar os danos causados quando uma oportunidade concreta e real é retirada do paciente devido ao descumprimento de orientações técnicas.
O presente texto tem como objetivo analisar um caso de responsabilidade civil do Estado em decorrência da morte de um bebê prematuro, causada pela falha na prestação de serviços médico-hospitalares e pelo descumprimento de orientações do Ministério da Saúde.
O caso em questão envolve um bebê que nasceu prematuro, com apenas 29 semanas de idade gestacional, e que necessitou de cuidados intensivos na UTI Neonatal. Após nove meses, o bebê apresentou sintomas de febre intensa, tosse seca e vômitos, sendo levado pelos pais à Unidade de Pronto Atendimento 24h (UPA). Apesar da classificação de risco muito urgente, o bebê não foi internado e recebeu apenas um medicamento sem efeito antibiótico ou anti-inflamatório. Em casa, os sintomas persistiram e o bebê necessitou de atendimento médico de emergência novamente. Ao retornar ao hospital, foi diagnosticado com pneumonia bacteriana e recebeu tratamento com medicamento antibiótico, porém, infelizmente, veio a falecer durante a noite.
A Corte estadual responsável pelo julgamento do caso, apesar de reconhecer que a equipe médica não seguiu a orientação de internação do Ministério da Saúde para casos de pneumonia em crianças prematuras com histórico de doença de base debilitante, reformou a sentença de procedência do pleito. Alegou-se a ausência de comprovação de falha no serviço ou de nexo de causalidade entre as condutas médicas adotadas e a morte da criança.
No entanto, tal entendimento não está em consonância com o disposto no art. 373, § 1º, do Código de Processo Civil (CPC), que estabelece a hipossuficiência probatória como fundamento para a inversão do ônus da prova. No caso em questão, a parte autora demonstrou a hipossuficiência técnica, uma vez que se trata de uma ação que envolve responsabilidade civil por erro médico.
A Primeira Turma, no AREsp n. 1.723.285/DF, já havia se posicionado favoravelmente à possibilidade de inversão do ônus da prova em casos de responsabilidade civil por erro médico, quando configurada a hipossuficiência técnica da parte autora. Nesse sentido, o Ministro Sérgio Kukina ressaltou que “é cabível inversão do ônus da prova nas ações que tratam de responsabilidade civil por erro médico, quando configurada situação de hipossuficiência técnica da parte autora” (AgInt no AREsp n. 1.723.285/DF, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 23/2/2021, DJe 26/2/2021).
No caso em análise, o Estado, como ente público responsável pela prestação dos serviços de saúde, tinha o dever de comprovar que a morte do bebê não estava diretamente relacionada à ausência de internação no momento em que se detectou a pneumonia bacteriana. Especialmente levando em consideração a orientação do Ministério da Saúde, que recomendava a internação de crianças prematuras com doença de base debilitante, como era o caso do bebê em questão.
Com base na teoria da perda de uma chance, é possível afirmar que, se o bebê tivesse sido oportunamente internado na unidade hospitalar após o diagnóstico de pneumonia bacteriana, sua morte poderia ter sido evitada. A negligência médica ao não realizar a internação resultou na perda de uma oportunidade concreta e real de proporcionar ao bebê um tratamento adequado e, consequentemente, de preservar sua vida.
É importante ressaltar que a teoria da perda de uma chance é aplicada no âmbito da responsabilidade civil por erro na prestação de serviços médico-hospitalares. Mesmo diante da falta de comprovação do nexo causal entre a ação médica e o dano, quando há um defeito na conduta médica que reduz as expectativas de cura, melhores condições de sobrevida ou tratamento menos doloroso, a responsabilidade recai sobre a perda dessa oportunidade, devendo ser indenizada de acordo com o regime da perda da chance.
Podemos concluir que a responsabilidade civil do Estado se aplica no caso de erro na prestação de serviços médico-hospitalares, quando há descumprimento de orientações técnicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde. A aplicação da teoria da perda de uma chance é fundamental para reparar os danos causados pela retirada de uma oportunidade concreta e real do paciente.
No caso em análise, a inversão do ônus da prova é cabível, tendo em vista a hipossuficiência técnica da parte autora. O ente público, responsável pela prestação dos serviços de saúde, tinha o dever de comprovar que a morte do bebê não estava relacionada à falha na prestação do serviço. A negligência médica ao não realizar a internação, mesmo diante das orientações do Ministério da Saúde, resultou na perda de uma chance de tratamento adequado e, consequentemente, na morte do bebê.
Por fim, a aplicação da teoria da perda de uma chance é essencial para garantir a responsabilização do Estado e a reparação dos danos causados. É necessário que os profissionais da área da saúde observem as orientações técnicas e ajam com diligência no intuito de preservar a vida e a saúde dos pacientes. A proteção e respeito à vida humana devem ser os pilares fundamentais na prestação dos serviços de saúde.
– STJ. 1ª Turma, REsp 1.985.977-DF, Rel. Ministro Sérgio Kukina, por unanimidade, j. 18.6.24 – inteiro teor
REGINALDO FERRETTI
OAB/SP N. 244.074
Entre em contato para mais informações.