Boletins Jurídicos

Adimplemento Substancial: a Preponderância da Função Social do Contrato e do Princípio da Boa-Fé Objetiva

Introdução

A teoria do adimplemento substancial, conforme exposta pelo Ministro Luis Felipe Salomão, visa coibir o uso abusivo do direito de resolução contratual pelo credor, priorizando a preservação do contrato em detrimento de desfazimentos desnecessários. Essa abordagem é fundamental para a realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato, conforme delineado no recurso especial REsp 1.051.270.

Fundamentação Teórica e Jurisprudencial

Embora o conceito de adimplemento substancial não esteja formalmente consagrado na legislação brasileira, tanto a doutrina quanto a jurisprudência reconhecem sua importância para a estabilidade das relações contratuais. Essa teoria é especialmente relevante para proteger os contratantes que, por circunstâncias excepcionais e imprevisíveis, não conseguem cumprir suas obrigações de maneira imediata.

O Ministro Antonio Carlos Ferreira, ao tratar do tema no REsp 1.581.505, menciona que a restrição do direito de resolução contratual por parte do credor é uma construção originária do direito inglês do século XVIII, que se disseminou para países de civil law, como o Brasil. É essencial enfatizar que essa proteção não se destina àqueles que, por vontade própria, deixam de cumprir suas obrigações.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se manifestado no sentido de que, para a aplicação da teoria do adimplemento substancial, o valor já pago pelo devedor deve ser considerável em relação à dívida, evitando assim que o credor seja indevidamente onerado ou penalizado.

Desafios na Aplicação da Teoria

Um dos principais desafios consiste em definir quais circunstâncias e qual percentual da obrigação permitem a aplicação dessa teoria, sempre considerando a função social do contrato e a boa-fé objetiva. O STJ tem avançado na construção de uma jurisprudência clara sobre o tema.

Casos Paradigmáticos

Um exemplo emblemático da aplicação do adimplemento substancial é o recurso especial REsp 76.362, relatado pelo falecido Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Nesse caso, foram estabelecidas diretrizes para a verificação da existência do adimplemento substancial, levando em conta as expectativas legítimas das partes, a insignificância do montante em falta e a possibilidade de manter a eficácia do contrato sem prejudicar o direito do credor de buscar a quantia devida por vias ordinárias.

Além disso, em um julgamento no tribunal de origem, os pedidos de resolução do contrato e pagamento de indenização feitos por uma indústria de autopeças foram considerados improcedentes, fundamentando-se na existência de adimplemento substancial, reconhecido na assinatura de uma confissão de dívida. O relator, Ministro Moura Ribeiro, destacou que, embora o novo sistema não tenha funcionado conforme esperado, a ausência de proveito para o credor, devido à forma como a prestação foi executada, configurava inadimplemento da obrigação.

Atraso em Mensalidades de Seguro-Saúde

Outro ponto relevante é a consideração do inadimplemento em contratos de seguro. No julgamento do REsp 293.722, a Terceira Turma entendeu que o simples atraso no pagamento de uma das parcelas do prêmio não configura inadimplemento total da obrigação do segurado. Assim, tal atraso não confere à seguradora o direito de descumprir sua obrigação principal de indenizar os gastos de tratamento do paciente. O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu o direito da segurada de receber indenização por dias de internação, mesmo com a suspensão da cobertura pela seguradora devido ao atraso.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, enfatizou que, embora o Código Civil exija o pagamento antecipado do prêmio como condição para indenização, a jurisprudência do STJ estabelece que, para que haja um desequilíbrio contratual que justifique a suspensão do contrato, o inadimplemento deve ser significativo o suficiente para privar substancialmente o credor da prestação a que teria direito.

Encerramento do Contrato e Descumprimento Significativo

A discussão sobre a possibilidade de encerramento do contrato devido ao inadimplemento foi também abordada na jurisprudência. Para que um contrato seja encerrado ou suspenso em razão de inadimplemento, é necessário que esse descumprimento seja significativo. No contexto de um contrato de seguro-saúde, onde a indenização por internação é a obrigação principal da seguradora, o mero atraso no pagamento de uma parcela do prêmio não se equipara ao inadimplemento total, não justificando a desobrigação da seguradora de cumprir sua parte.

Conclusão

Em suma, a teoria do adimplemento substancial configura-se como um importante mecanismo para equilibrar as relações contratuais, promovendo a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Sua aplicação deve ser cuidadosamente avaliada, considerando as especificidades de cada situação, a fim de garantir a justiça nas relações obrigacionais. A jurisprudência, em constante evolução, tem contribuído para a consolidação desse entendimento, refletindo a necessidade de proteção das partes em situações excepcionais.

Referências:

REsp 1.051.270
REsp 1.581.505
REsp 76.362
REsp 1.622.555
REsp 1.731.193
REsp 293.722

REGINALDO FERRETTI
OAB/SP n. 244.074

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