A cláusula que estipula a retenção de recebíveis em decorrência de uma simples contestação de compra, considerada procedente pelos participantes da relação de arranjos de pagamento, é considerada abusiva.
A questão central gira em torno da avaliação da cláusula contratual entre o lojista e a credenciadora do cartão de crédito, que impõe ao lojista a obrigação de reembolsar o valor total da transação financeira em casos de chargeback. O chargeback refere-se ao cancelamento de uma venda realizada com cartões de crédito ou débito, podendo ocorrer quando (a) o titular do cartão não reconhece a compra ou (b) a transação não cumpre as normas estipuladas nos contratos, termos ou manuais das administradoras de cartões. Assim, ocorre o cancelamento do repasse ou estorno do crédito, caso já tenha sido efetuado, pela credenciadora ao lojista.
Ao realizar uma compra com cartão de crédito, surgem ao menos três títulos de crédito: um do portador em relação ao emissor, com vencimento na data da fatura; outro do emissor para a credenciadora, após a dedução da taxa de intercâmbio; e o terceiro entre a credenciadora e o estabelecimento, descontada a taxa de desconto.
Quando o portador do cartão contestar um lançamento em sua fatura, o objetivo é anular esses três recebíveis. O chargeback se consolidou como a forma mais comum e acessível de resolução de conflitos no comércio eletrônico, favorecendo o consumidor.
Com a globalização econômica e o uso transfronteiriço de cartões de crédito, é do interesse dos arranjos de pagamento que as regras sejam uniformes entre os países, levando as bandeiras a se orientarem pelas normas dos maiores mercados onde atuam.
De acordo com a Lei n. 12.865/2013, que instituiu o Sistema Brasileiro de Pagamentos, cabe ao Banco Central regulamentar este sistema. Contudo, cada bandeira de cartão de crédito ainda possui a liberdade de regulamentar suas políticas de contestação de forma independente, sem que normas mínimas comuns sejam estabelecidas.
É imperativo que a contestação de lançamentos evolua em aspectos como transparência e acesso à informação. A autonomia dos espaços privados deve ser respeitada, mas isso não os isenta da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Historicamente, os direitos fundamentais foram criados para proteger indivíduos de abusos do Estado. Com o passar do tempo, essa proteção se ampliou também para as pessoas jurídicas e atualmente a doutrina e a jurisprudência reconhecem que os direitos fundamentais têm impacto nos negócios privados.
A teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais foi introduzida na jurisprudência brasileira pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu que, para uma associação excluir um membro, é necessário respeitar o direito à ampla defesa e ao contraditório.
Neste sentido, é vital garantir que a ampla defesa e o contraditório sejam assegurados nas contestações de lançamentos. A recente decisão no Recurso Especial nº 2.151.735-SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi e com relatoria para acórdão do Ministro Humberto Martins, reafirma a importância desses princípios, confirmando, em julgamento realizado em 15 de outubro de 2024, que as garantias processuais devem ser respeitadas nas relações contratuais envolvendo cartões de crédito, promovendo assim um equilíbrio entre os direitos dos consumidores e as obrigações dos comerciantes.
REGINALDO FERRETTI
OAB/SP n. 244.074
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